Existe um bomba silenciosa no processo legislativo que regulamenta o Comitê Gestor do IBS. Ele pode e deve ainda ser desarmado. Estas são as disposições do artigo 91.º, n.º 3, do PLP 108/24que trata especificamente do competência do processo administrativo tributário do IBS.
Este dispositivo estabelece que: salvo o disposto neste artigo, é vedado às autoridades julgadoras, no âmbito do processo administrativo tributário, indeferirem o pedido ou descumprirem a “legislação” tributária sob fundamento de inconstitucionalidade ou ilegalidade.
A palavra legislação pode passar despercebida aos leigos, mas abrange, nos termos do artigo 60 do Código Tributário Nacional (CTN), não apenas leis, tratados e convenções internacionais, mas também decretos e normas complementares que tratam de tributos. e relacionamentos pertinentes a eles. Ou seja, de forma genérica diz respeito a leis e atos administrativos “não a leis”.
Isso significa que, quando determinado contribuinte sofrer autuação fiscal e apresentar suas defesas e recursos ao órgão julgador administrativo do IBS, os juízes ficarão impedidos, por exemplo, de rejeitar uma portaria, uma instrução normativa ou um decreto (atos administrativos infralegais). que violam diretamente uma disposição da lei. Este é o dispositivo que se pretende aprovar e que, sem sombra de dúvida, não acolhe os princípios constitucionais reconhecidos na reforma tributária.
Será uma espécie de carta branca para a administração tributária interpretar e orientar sua equipe de auditores fiscais, por meio de portarias, resoluções, instruções normativas, decretos ou atos que as apliquem, para exigir obrigações ou restringir direitos além dos limites definidos em lei. E os auditores impotentes ficarão vinculados a eles e não poderão adotar qualquer conduta diferente.
O que está acontecendo hoje, tanto no processo administrativo federal que tramita no Conselho de Administração Fiscal (Carf) (Decreto nº 70.235/72), bem como no processo administrativo do Estado de São Paulo que tramita no Tribunal de Impostos e Taxas (TIT) (Lei nº 13.457/09) e na maioria dos demais órgãos de julgamento administrativo, o órgão tem autoridade para afastar atos infralegais que violem a lei.
Esse controle de legalidade no processo administrativo não é uma mera opção, mas é uma obrigação de toda a administração decorrente do artigo 37 da Constituição Federal de 1988. Parece muito inadequado e contraditório – para usar palavras amigáveis – pretender proibir a administração tributária, que está obrigada a observar o princípio da legalidade, está proibida de retirar normas infralegais que violem a mesma legalidade. E pior, a restrição visa o órgão responsável pela fiscalização dos atos da administração no âmbito de processos administrativos tributários instaurados por iniciativa do contribuinte que se sente lesado com potencial abuso de poder por parte da administração tributária.
O que parece é que nenhum controle é desejado, deixando o destinatário da demanda ilegal com poucas opções para resolver a questão de forma rápida e barata, empurrando-o para a opção de um Judiciário lento e caro. Certamente, o poder público poderá cobrar algo de alguns, reafirmando o já denunciado fenómeno da inconstitucionalidade útil. Seria uma espécie de “expedição de pesca” do direito tributário.
O processo administrativo tributário serve justamente para garantir os direitos dos contribuintes sob sua jurisdição, conforme consta expressamente no capítulo da Constituição Federal que trata dos direitos e garantias fundamentais, notadamente no artigo 5º, LIV e LV.
Não são raras as situações em que a administração tributária exacerbou o seu poder de regulamentar as leis, emitindo normas infralegais que ultrapassavam os limites legais.
Mas a situação piora se for contextualizada com outras situações, fechando um ciclo muito perigoso que é altamente convidativo à discricionariedade fiscal por parte de algum futuro governo inábil ou mal-intencionado.
O poder público edita as normas, interpreta, fiscaliza, lança, cobra, arrecada e gasta os recursos do contribuinte. Dentre as normas infralegais disfarçadas de “interpretativas”, pode haver a imposição de exigências manifestamente contrárias ao texto das leis.
O crédito tributário constituído será registrado em dívida ativa, já sujeitando o contribuinte a medidas administrativas de cobrança, como protesto, negação (SPC, Serasa, Cadin), aval pré-executivo, bloqueio de licenças em agências reguladoras, restrições de financiamento em bancos oficiais , proibição de distribuição de dividendos, rescisão de contratos públicos, perda de incentivos fiscais, suspensão de CPF, cancelamento de CNPJ e outros. O contribuinte que decidir recorrer à Justiça depara-se com um crédito acrescido de 20% com encargos judiciais e sucumbência de honorários.
Nas disputas judiciais, a Fazenda possui privilégios processuais, como prazos duplos, isenção de custas e outros. Os tribunais superiores têm parte de seus assessores oriundos de órgãos fiscais, inclusive fiscais que acabam beneficiários por falhas em teses vencidas pelo Estado, em conflito de interesses teórico e potencial. Os processos são lentos, demoram cerca de 10 anos e, quando o contribuinte vence, a decisão é modificada em favor do Estado infrator derrotado, por vezes definindo o início dos efeitos daquela inconstitucionalidade para um momento futuro.
Para piorar, pretende-se reduzir os honorários de sucumbência dos advogados dos contribuintes (tópico 1.255 do STF), mas apenas quando a Fazenda Pública for derrotada, mitigando a pena de sucumbência que a lei lhe impôs legitimamente como instrumento pedagógico. Se a disputa for relativa a tributos indiretos, a Fazenda vencida não devolve o argumento de que o tributo foi repassado ao consumidor final (artigo 166 do CTN). E quando não tem jeito, os impostos pagos indevidamente pelos contribuintes viram precatórios, cujo fim é a inadimplência em quase todos os Estados e Municípios do país.
Neste cenário, o processo administrativo é um meio rápido, técnico e eficiente de controle de abusos e ilegalidades, pois funciona há mais de 100 anos no Carf e há quase 95 anos no TIT.
Mas agora, não satisfeito com o conjunto de instrumentos de coação e coação face aos contribuintes, o PLP está disposto a retirar um dos poucos instrumentos à disposição do contribuinte para controlar possíveis abusos de autoritários de plantão que possam assumir a administração tributária em algum momento no futurojá sob a égide do novo sistema de administração tributária sobre o consumo.
Há tempo para mudar. O desequilíbrio nas relações não é saudável para o Estado democrático de direito e não contribuirá de forma alguma para a harmonia social.
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