Neste artigo, co-escrito com Camila Affonso, sócia do Grupo Leggio, e sua equipe de consultores, vamos aprender quais são os títulos CBIOs e entenda como funciona o programa RenovaBio, no contexto da transição energética nacional. Além disso, exploraremos o impacto que este programa tem nos distribuidores e, consequentemente, nos consumidores.
O tema é ao mesmo tempo relevante e específicopor isso trago para esta coluna a parceria com a equipe Leggio, especialistas no tema e no setor.
No início deste mês, diversos veículos informaram que o Vibra (VBBR3) e Ipiranga, Empresa do Grupo Ultra (UGPA3), teria interesse em questionar juridicamente alguns pontos do RenovaBio, principalmente no que diz respeito à compra obrigatória de CBIOs. Mas o que é o programa RenovaBio, o que são esses CBIOs e qual o impacto financeiro para as empresas do setor?
Para responder a estas questões, precisamos de dar um passo atrás e regressar ao acordo de Paris, adoptado em 2015 durante a COP21. Isto foi responsável por muitas das recentes ações globais voltadas para a sustentabilidade e a descarbonização. O objetivo do acordo era estabelecer um compromisso global para conter o aumento da temperatura da Terra em até 2°C, quando comparado aos níveis pré-industriais. A principal ação trazida nas COPs mais recentes foi o afastamento do uso de combustíveis fósseis, limitando a emissão de gases de efeito estufa.
Nesse contexto, o Brasil se autoimpôs diversas metas e diretrizes para se adequar ao compromisso assumido em 2015. Entre elas, destaca-se a Política Nacional de Biocombustíveis, também conhecida como programa RenovaBio. Este programa, apresentado com base na Lei nº 13.576, de 26 de dezembro de 2017, tem dois objetivos principais:
- Aumentar contribuição de bioenergia dentro da matriz energética brasileira, com o uso de biocombustíveis como etanol e biodiesel;
- e aumentar o previsibilidade da demanda por esses biocombustíveiscontribuindo também para a sua competitividade.
O principal mecanismo trazido pelo RenovaBio para atingir seus objetivos é a utilização dos chamados CBIOs: títulos de crédito de descarbonização (ou apenas créditos de descarbonização). Um CBIO equivale a um título garantido por uma tonelada de CO2 que serão evitados com a produção ou importação de biocombustíveis.
O mecanismo funciona de forma compensatória, para que a venda de combustíveis fósseis subsidie a produção de biocombustíveis. Dessa forma, os CBIOs podem ser emitidos por produtores e importadores de biocombustíveis, mas devem ser adquiridos por distribuidores de combustíveis fósseis. Assim, existe um benefício financeiro para quem produz ou importa biocombustíveis (enquanto há uma penalização financeira para quem distribui combustíveis fósseis).
O processo de autorização para emissão e validação de notas fiscais que viabilizam a emissão de títulos de CBIOs é realizado pelos produtores e importadores de biocombustíveis junto à ANP – Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. Obtida a documentação, o emissor deverá contratar um escriturador (banco ou instituição financeira habilitada) para emitir os CBIOs e, em seguida, trazê-los para registro no B3onde podem ser livremente negociados.
Anualmente, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) estabelece uma meta para os CBIOs que devem ser aposentados, ou seja, retirados de circulação pelas distribuidoras de combustíveis.
Aposentar um CBIO significa também retirá-lo do balanço, o que garante o mecanismo de penalidade financeira. A existência de títulos CBIO (em vez de, por exemplo, simples multa ou algo semelhante) é fundamental para a formação do mercado secundário na B3, que traz liquidez, transparência e maior eficiência de preços para esses títulos.
A meta de aposentação dos CBIOs é estipulada em âmbito nacional e cada distribuidora deve aposentar os CBIOs proporcionalmente à sua participação de mercado. Descumprimento das regras do RenovaBio resulta em multas para empresas. Portanto, para cumprir as metas do CNPE, as distribuidoras deverão adquirir os CBIOs gerados pelos produtores e importadores de biocombustíveis e depois aposentá-los.
No entanto, as metas estabelecidas em 2018 para a redução de emissões utilizaram uma série de pressupostos que se revelaram mais optimistas do que a realidade parecia ser. Fatores como a recessão económica causada pela pandemia de Covid-19, a mudança na tributação dos combustíveis e a guerra na Ucrâniacausou um desalinhamento entre as suposições de modelagem e o consumo real de combustível.
Nesse sentido, o Ministério de Minas e Energia atualizou a modelagem com premissas adequadas para a realidade de 2023/2024. A partir destes resultados observou-se que as metas do CBIOS eram em média 40% maiores do que seria adequado, segundo dados do Ministério. Assim, para o ano de 2024 já foram adotadas novas metas com menores ambições ambientais. Veja o gráfico abaixo:
Para entender o impacto desse programa nas distribuidoras, tomemos como exemplo a empresa Vibra e o Grupo Ultra. A Vibra é a distribuidora com maior participação no mercado brasileiro e, consequentemente, a maior responsável pela compra e retirada de CBIOs. Só em 2023, um total de 10,2 milhões de CBIOs se aposentaram no ano, segundo a ANP. Esse valor representou 27% da meta total fixada pelo CNPE de 37,5 milhões em 2023.
Para cumprir as metas determinadas, a empresa incorreu em um custo de R$ 1,46 bilhão no ano passado, segundo seu relatório de demonstrações financeiras de 2023. Para se ter uma ideia da magnitude desse valor, o lucro líquido da empresa em 2023 foi de R$ 4,77 bilhões (ou seja, cerca de apenas 3 vezes o valor de aquisição dos CBIOs).
Além disso, a compra de CBIOs pelas distribuidoras também gera outros custos indiretos além do custo de aquisição, como custos administrativos com operações e pensões, custos de transação e aumento da necessidade de capital de giro.
Por sua vez, a Ipiranga, que disputa o segundo lugar em participação no mercado nacional com a Raízen (RAIZ4), tinha meta individual de 7,05 milhões de CBIOS para o ano de 2023.
O Grupo Ultra, dono da Ipiranga e de outras distribuidoras, teve um custo total de R$ 790 milhões com a aquisição de títulos de crédito de descarbonização no ano passado. Esse custo também foi relevante para o grupo, que obteve lucro líquido apenas cerca de 3 vezes esse custo (R$ 2,5 bilhões), proporção muito semelhante ao caso da Vibra.
O reajuste das metas proposto pelo Ministério de Minas e Energia reduzirá a necessidade de aquisição de CBIOs no mercado em aproximadamente 28% nos próximos 10 anos, em comparação às metas anteriores. A redução da meta do CBIO também pode beneficiar as empresas devido à menor demanda por títulos, o que pressiona para baixo o preço do crédito. Aliás, esse preço havia aumentado significativamente em 2023 e já apresenta quedas substanciais neste ano, como pode ser visto no gráfico abaixo.
A redução das metas de aposentadoria dos CBIOs foi um passo necessário, pois garante metas alcançáveis e mantém acesa a chama da transição. Contudo, não podemos esquecer que Essa redução pode causar dificuldades para o Brasil cumprir os compromissos assumidos no Acordo de Paris, pois força a queda dos preços do CBIOS (como vimos no gráfico acima) e, portanto, reduz a atratividade do setor de produção e importação de biocombustíveis.
As políticas de crédito de carbono também são utilizadas em outros países. A diferença está principalmente no alcance dos setores que estão sujeitos às metas de descarbonização. Enquanto no Brasil seu uso ainda está restrito ao setor de combustíveis, em outros países o setor industrial (e às vezes alguns outros) também entra em regulamentação. Esta poderia ser uma saída interessante para nós.
Concluímos que os CBIOs são instrumentos fundamentais da política nacional de transição energética, o que, por sua vez, se traduz num passo importante em direção a um ambiente sustentável. Apesar disso, não há duvidas que acabam por aumentar o custo do transporte e do combustível para o consumidor, pressionando os preços para cima.
Como sempre, a lição zero que aprendemos em Finanças está presente: Não existe almoço grátis! Sim, há um custo que a sociedade precisará arcar em prol de uma matriz energética mais sustentável.
* Carlos Heitor Campani é Doutor em Finanças pelo CNPI, Diretor Acadêmico da illusmus – Academia de Finanças, Sócio da CHC Consultoria e Four Capital, além de Pesquisador da ENS – Escola de Negócios e Seguros.
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