Isto acarreta prejuízos em vários níveis: na saúde, grandes incêndios produzem muita fumaça, o que provoca aumento de doenças respiratórias; Na frente económica, o fogo pode destruir cercas, tratores e edifícios agrícolas. Até o aeroporto de Corumbá foi fechado por falta de visibilidade. Entre agosto e setembro, o Pantanal teve 30 dias sem chuva, umidade abaixo de 30%, temperatura acima de 30ºC e ventos acima de 30 km/h. Getty Images via BBC Imagine a cena: um caminhão passando por uma estrada libera uma pequena faísca que é suficiente para atear fogo na vegetação próxima. O fogo se espalha tão rapidamente que atinge o próprio caminhão, que pega fogo e explode. Pode parecer cena de filme de ação, mas aconteceu de verdade, em uma estrada no Pantanal. E uma série de fatores contribuem para que um cenário como esse seja possível na região. A princípio, é possível perceber que o Pantanal atingiu, entre agosto e setembro, a “Regra dos 30” (que é uma expressão comum entre quem trabalha com fogo): 30 dias sem chuva, umidade abaixo de 30%, temperatura acima de 30ºC e ventos acima de 30 km/h. Mas para além da conjunção de tantos 30 anos, esta é uma região forjada no fogo, dependente dele. É uma zona húmida, onde o fogo não é pensado como parte da paisagem natural. Mas é fundamental para manter as características do local. Os locais que mais queimam no Pantanal são também os locais que mais inundam, à semelhança do que acontece no Delta do Okavango, no Botswana. Durante os períodos úmidos, há muita produção de matéria orgânica. Muitas das gramíneas do Pantanal são adaptadas ao fogo, e produzem muita matéria seca, ou seja, crescem e, quando brotam, a grama do ano anterior seca e fica ali. Durante os períodos de seca, essa biomassa produzida fica disponível para queima. Atualmente, o Pantanal vive um período de seca extrema, que começou em 2019. Nesse período, houve apenas um ano de cheia: 2023. Assim, toda a biomassa produzida na enchente do ano passado agora é material que pode ser queimado. Como acontecem as enchentes e secas no Pantanal? Bombeiro trabalha para apagar incêndio no Parque Burle Marx, em Brasília EPA-EFE/REX/Shutterstock Bombeiro do Instituto Ambiental de Brasília (IBRAM) trabalha para apagar incêndio florestal no Parque Ecológico Burle Marx, em Brasília, Brasil , 27 de agosto de 2024. Crédito,EPA-EFE/REX/Shutterstock O que chamamos de Pantanal é, na verdade, um lugar onde chove pouco. Do extremo leste ao extremo oeste do Pantanal, temos uma precipitação média em torno de 1.000 mm/ano. Seria um clima quase semiárido, não fossem as chuvas nas cabeceiras. Do norte do Pantanal vêm as águas dos rios Paraguai e Cuiabá, que são os mais potentes. Da parte oriental, principalmente dos rios Aquidauana e Miranda. Quando esses rios liberam grande volume de água, eles transbordam e o Pantanal inunda. E o que temos observado nos últimos anos é uma diminuição das chuvas, em geral, nas cabeceiras. Então, no Cerrado e um pouco na transição para a Amazônia (áreas de cabeceira desses rios), chove menos. Historicamente, a região tem ciclos plurianuais de secas e inundações. A série de dados mais longa que temos é do rio Paraguai, onde a Marinha faz medições desde 1900. Do início das coletas até 1960, houve muita oscilação, com anos mais cheios e anos mais secos. Em 1960, o Pantanal entrou em um ciclo de seca, até 1974, com alguns anos de enchentes entre eles, como agora em 2023. De 1974 a 2018, o Pantanal viveu um ciclo de grandes enchentes, até que, em 2019, voltamos a Padrão de 1960. Há certamente uma questão cíclica na região. E isto está combinado com eventos extremos, que são um efeito das alterações climáticas. Vivemos, portanto, um ciclo de seca, agravado por eventos extremos. E ainda estamos em um período de aprendizado. Como estamos em um ciclo de seca iniciado em 2019, após um longo período de enchentes, os mais jovens, mesmo aqueles que estão acostumados com o Pantanal, ainda não viveram um ciclo de seca como o que temos agora. Para eles é novo e poucas pessoas sabem o que fazer. Resiliência e adaptação Em 2024, todos estes factores convergiram: a regra dos 30, a grande quantidade de biomassa produzida no ano de cheia anterior, um ciclo de seca, alterações climáticas, um período de aprendizagem. Isto significa que este ano a região enfrentará incêndios que superam os registados no mesmo período de 2020, ano recorde de incêndios. E a estes fatores acrescenta-se ainda outro: a capacidade da flora local de se adaptar a esta alternância de fogo e água. O Pantanal está mais preparado para o fogo que a Amazônia. Por aqui, um ambiente, quando muito sensível, demora cerca de 20 anos para se recuperar. Na Amazônia, há registros de regiões que demoraram mais de 40 anos para se recuperar, ou que nunca mais voltaram a ser o que eram. Algumas áreas do Pantanal, como as matas ciliares, são mais sensíveis ao fogo. Dependendo da intensidade, o fogo vai moldar o crescimento dessa mata ciliar, restrita às árvores que conseguem se estabelecer nesses ambientes. O Cerrado possui cerca de 12 mil espécies de flora, entre árvores, arbustos, ervas e todos os demais hábitos de crescimento. O Pantanal tem apenas 2.500 para todos os hábitos de crescimento, porque aqui só sobrevivem aqueles que conseguem superar a questão das enchentes e dos incêndios. Os campos inundáveis, por outro lado, são extremamente resistentes ao fogo: você os queima hoje, amanhã eles começam a crescer novamente. Algumas gramíneas podem crescer junto com a enchente e atingir 5m de altura – às vezes são maiores que a cana-de-açúcar. Mesmo quando os campos não inundam, apenas a elevação do lençol freático leva a uma grande produção de biomassa. O efeito deste incêndio associado às inundações é tornar a paisagem mais aberta. Após a inundação de uma área, apenas as árvores que podem germinar debaixo d’água ou que resistem às inundações após germinarem no seco irão germinar. Com a ocorrência do fogo, essas árvores que germinaram e/ou cresceram sob influência da enchente podem morrer. A tendência é que os ambientes fiquem mais abertos, com árvores e arbustos substituídos por áreas densas de campo com gramíneas. Nos grandes incêndios, todos perdem Recentemente, o governo federal aprovou a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo e Mato Grosso do Sul também aprovou sua lei estadual de gestão. Essa gestão envolve todo o trabalho educativo, valorizando a gestão tradicional que as pessoas fazem e definindo os horários e locais adequados para realizar essa gestão. Não é só controlar e combater incêndios, mas um processo de conversar com as pessoas, planejar quem vai queimar, quando vai queimar, quantas áreas vão queimar. Tudo isso para reduzir a biomassa disponível nos períodos mais secos do ano. Estávamos auxiliando o governo do estado na criação de um programa de fogo prescrito em fazendas utilizando a plataforma SIFAU, que foi desenvolvida pela UFRJ em parceria com a UFMS para auxiliar no planejamento do Manejo Integrado do Fogo. Com a utilização do fogo prescrito é possível reduzir a biomassa através da queima preventiva num período em que não há risco de incêndio para evitar que, no período mais seco, haja combustível suficiente para gerar grandes incêndios. É combater fogo com fogo. Quando o governo estava prestes a implementar o programa, eclodiram incêndios. A queima prescrita ficou em segundo plano e agora lidamos com o combate. Isto leva a perdas em vários níveis. Em termos de saúde, os grandes incêndios produzem muita fumaça, o que prejudica a saúde das pessoas, com aumento de doenças respiratórias. Na frente económica, o fogo pode destruir cercas, tratores e edifícios agrícolas. Até o aeroporto de Corumbá acaba fechado nos dias em que não há visibilidade para pousos e decolagens. Além disso, apesar da capacidade de adaptação da flora local, se o fogo se tornar demasiado frequente, algumas espécies mais sensíveis acabarão por se tornar raras no sistema ou mesmo desaparecer. Pesquisas em andamento sobre líquenes mostraram que as áreas florestais que pegaram fogo em 2020 não tinham líquenes. Áreas que pegaram fogo há 20 anos os têm novamente. É como um efeito sanfona, que também acontece com a fauna da região. Mas este efeito concertina tem um limite. Sem a implementação de uma política adequada de manejo do fogo, o Pantanal tende a sofrer cada vez mais com esta combinação de fatores, agravados pelas mudanças climáticas. *Geraldo Alves Damasceno Junior é professor titular do Instituto de Biociências da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). **Este artigo foi publicado no The Conversation e reproduzido aqui sob licença Creative Commons. Clique aqui para ler a versão original. Rodapé da BBC (Foto: BBC) Época Negócios
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