Em artigos neste espaço, além de algumas apresentações no meio acadêmico e profissional, tenho dito que estou entre a minoria de tributaristas que defendem a reforma tributária. Contudo, com a elaboração e discussão dos textos legais, aparecem algumas surpresas que questionam a credibilidade desta mudança significativa no sistema tributário brasileiro.
Uma das últimas surpresas que tem recebido atenção é a previsão de distribuição desproporcional de lucros (dividendos) como fato gerador de doaçõeso ITCMD. Descaradamente inconstitucionalesta medida não só desacredita a reforma – o que prejudica alguns progressos – mas também mantém deliberadamente situações que, em certos casos, provocará litígio.
Começando do início: está prevista distribuição desproporcional de lucros (dividendos) para sociedades limitadas. Gostaria de lembrar desde já que esse tipo de sociedade (sociedade limitada) conta com a esmagadora maioria dos empresários brasileiros. Nestas sociedades empresárias, os sócios podem decidir, através do contrato de sociedade e deliberação em assembleia, que os lucros serão distribuídos sem respeitar a proporção da participação de cada um deles no capital social.
Como a sociedade limitada se caracteriza como uma “sociedade de pessoas” (diferentemente da sociedade por ações, que seria uma “sociedade de capitais”), esta possibilidade de remuneração desigual entre sócios decorre da estrutura de capital da pessoa jurídica, que pode estimular a participação, o noivado ou do envolvimento de cada sócio na prospecção de clientes e negócios, bem como resultante do arranjo societário que os sócios tenham escolhido para regular o relacionamento entre si e entre eles e a empresa.
A distribuição desproporcional de lucros (dividendos), dessa forma, é um instituto de natureza societária. Não decorre de regulamentação civil, o que implica retirar a sua classificação ou qualificação como “doação”. Não há doação, de ninguém, no caso de deliberação societária (repare-se) quanto à distribuição desproporcional de lucros.
Bem, de acordo com o artigo 155, I da Constituição Federal“[c]Cabe aos Estados e ao Distrito Federal cobrar impostos sobre (…) doações de quaisquer bens ou direitos”. Ao “escolher” a doação como fato gerador do imposto, o constituinte originário pensava na relação jurídica que consta nos manuais de direito civil e que, hoje, é regulamentada da seguinte forma pelo Código Civil: “Considera-se doação a contrato em que uma pessoa, livremente, transfere seus bens bens ou vantagens a outrem” (artigo 538).
Nestes termos, a doação exige: (i) contrato entre doador e donatário; (ii) liberalidade dos doadores; e (iii) transferência de bens (bens ou vantagens) do doador para o donatário. Nenhum destes requisitos é cumprido na distribuição desproporcional de lucros (dividendos).
Em primeiro lugar, não existe contrato bilateral; a distribuição de lucros é uma relação jurídica “multipartite”, que envolve os sócios e a empresa – sim, também deve haver interesse por parte da pessoa jurídica para que os dividendos sejam distribuídos de forma desproporcional, dada a sua estrutura de capital.
Então, indo diretamente ao último requisito, não há transferência de patrimônio de um sócio para outro, pois o direito aos resultados positivos da empresa (entendida como atividade econômica exercida de forma organizada, nos termos do artigo 966 do mesmo Código Civil), sob a forma de dividendos (distribuição de lucros), só se constitui com a decisão sobre a destinação de lucros pelos próprios sócios, nos termos do contrato social. Dessa forma, o contrato social, primeiro, e a ata de deliberação de lucro, depois, já delimitam e definem os direitos de cada sócio.
Voltemos ao segundo requisito, que me parece o mais relevante. A distribuição desproporcional de lucros (dividendos) não se faz através da liberalidade dos sócios. Aqui relembro uma máxima das finanças corporativas: “não existe almoço grátis”. Isso significa que a previsão de distribuição desproporcional de lucros (dividendos) não se deve à gentileza ou ao altruísmo dos sócios: há justificativas econômico-financeiras e operacionais para a decisão de distribuir o resultado de forma diferente para cada um dos parceiros. Conforme mencionado, a distribuição desproporcional de lucros (dividendos) decorre da estrutura de capital da sociedade limitada, e traz todas as consequências dessa caracterização.
Tudo o que foi discutido até aqui se restringe ao âmbito constitucional. Portanto, este dispositivo do projeto de reforma tributária é inconstitucional.
Mas, além disso, não se pode ignorar as disposições do artigo 110 do Código Tributário Nacional – CTN: “O direito tributário não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance dos institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal (…) para definir ou limitar a competência tributária”.
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