Os conflitos entre vizinhos, em muitos casos, têm um denominador comum – o adepto de música alta. Os festivais de música eletrônica, que reúnem naturalmente esse público, enfrentam dificuldades de adaptação ao novo cenário nas primeiras horas da manhã da capital paulista, marcado por um número crescente de reclamações de ruído.
Segundo a prefeitura de São Paulo, o número de reclamações registradas pelo Programa Silêncio Urbano, Psiu, cresceu quase 50% no ano passado em relação a 2022. Comparando o período antes da pandemia e depois, entre 2019 e 2023, as reclamações aumentaram 123 %.
Entre os que não conseguem dormir e os que gritam que a madrugada paulistana morreu estão os organizadores do festival. Uma possível solução, que vem ganhando adeptos na cena eletrônica, é mudar o evento para o formato diurno.
Pelas redes sociais, o DJ brasileiro Lukas Ruiz, conhecido como Vintage Culture, expressou sua frustração com a dificuldade em encontrar locais na capital paulista que aceitassem sediar o festival Só Track Boa, do qual foi atração principal e é um dos os conselheiros.
“Essa festa só vai acontecer pelo enorme esforço da nossa equipe”, disse o artista em comentário no Instagram. “Não tem mais lugar em São Paulo para fazer um evento grande, com som alto e os efeitos que você gosta”.
O alto volume do Só Track Boa, que até o ano passado acontecia nas primeiras horas da manhã no Autódromo de Interlagos, gerou críticas entre moradores da região. Em postagem no site Reclame Aqui, um vizinho acusou o evento de estar “além dos decibéis permitidos”. Outros comentários no portal reforçaram o protesto.
A Entourage Live, empresa responsável pela produção do evento, afirmou que baixou o som após as reclamações, informação que foi confirmada pela prefeitura de São Paulo, administradora do Autódromo. A redução do volume, que aconteceu em tempo real, enquanto os DJs tocavam, gerou críticas do público.
Para resolver o problema, a Só Track Boa está subindo a “escada para baixo”, nas palavras do diretor da Entourage. Em 2023, o festival começou às 16h e terminou às 8h. Este ano, começou às 17h e terminou às 5h. A maior inovação pode chegar em 2025, os organizadores querem que os DJs toquem das 14h às 2h.
“Não é justo com a população que mora perto, que passa a noite acordada por causa de algum acontecimento”, diz Madueño. “Há muito tempo que sonho em fazer um festival diurno.” As festas diurnas já são um formato consolidado na Europa e nos Estados Unidos, principalmente no verão, quando os dias duram muito mais que as noites.
Outro festival de música eletrônica foi forçado a mudar de local após reclamações de barulho. O Time Warp, que aconteceu no sambódromo do Anhembi, este ano foi para o vale do Anhangabaú.
Segundo a produção do festival, quando os eventos foram retomados após a pandemia, moradores de bairros que circundam o Anhembi, como Santana e Casa Verde, manifestaram-se para que o local não recebesse celebrações que fizessem barulho até altas horas da noite.
Hoje, o sambódromo não recebe mais eventos nas primeiras horas da manhã, exceto desfiles de escolas de samba. O administrador do site afirma que as festas são permitidas até às 23h às sextas e sábados, e até às 22h nos restantes dias.
Na edição deste ano do Time Warp, foram desenhadas estratégias para mitigar os impactos do som no entorno do vale do Anhangabaú. A produção posicionou os alto-falantes de forma oposta, tentando reduzir a propagação das ondas sonoras. A organização afirma não ter recebido reclamações de ruído.
As discussões sobre ruído surgem no contexto de um veto judicial à tentativa da Câmara Municipal de São Paulo de aumentar o volume permitido no entorno dos estádios. A lei criou autorização para que shows e eventos de grande porte tenham limite sonoro de 75 decibéis, aumento de 30% em relação às normas anteriores e o equivalente ao ruído produzido por um avião na cabeceira do aeroporto de Congonhas.
Em geral, o que mais incomoda o bairro durante os festivais são os graves, sons de frequência mais baixa que fazem o chão tremer.
Segundo o professor Francisco Guimarães, do departamento de Física da USP em São Carlos, as ondas graves, na verdade, se propagam mais que as agudas. Porém, isso é relativo e tudo depende dos prédios e estruturas ao redor dos palcos, onde o som atinge e reflete.
Ou seja, não há como ter controle absoluto sobre a direção em que as ondas sonoras se propagarão, uma vez que encontram obstáculos, podendo atingir qualquer casa do entorno.
Tanto Ruiz quanto Madueño acreditam que as restrições a eventos de música eletrônica em grande escala não advêm apenas do ruído. Para eles, as barreiras vêm também dos estigmas sobre o estilo musical.
“Existem duplicidades em certas questões”, afirma o diretor de operações da Entourage, que há quinze anos organiza eventos na área. Para ele, muitos estereótipos são aplicados aos festivais eletrônicos, como a imagem de que são eventos desorganizados, com abuso de substâncias ilícitas e falta de segurança.
“Apesar de tudo, conseguimos crescer muito aos olhos da sociedade. Nosso evento não é no meio do mato, onde é muito difícil chegar. É no meio da cidade de São Paulo.”
Também destaca ações de segurança e proteção aos frequentadores. “Se nos preocupamos com quem está dentro do nosso evento, nos preocupamos com a comunidade lá fora. Se fomos considerados marginalizados por tanto tempo, sabemos que internamente estamos fazendo a coisa certa”.
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