Mais de três mil trabalhadores em situação análoga à escravidão foram resgatados em um ano no Brasil. É o maior número em 14 anos. Edição de 16/07/2024 Mais de três mil trabalhadores em situação análoga à escravidão foram resgatados em um ano no Brasil. É o maior número em 14 anos. O Profissão Repórter mostrou nesta terça-feira (16) como esses trabalhadores tentam reconstruir suas vidas após saírem de uma situação de trabalho precária. Saiba mais abaixo. ‘Muita gente apanhou’ Na Bahia, a associação “Vida Depois do Resgate no Sertão” faz parte do projeto “Vida Depois do Resgate”, em que trabalhadores resgatados de situações análogas à escravidão têm a oportunidade de serem donos do seu próprio negócio. Todos os trabalhadores da associação foram resgatados no ano passado em três vinícolas de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. Eles contam o que aconteceu lá. “Muito trabalho, pouca comida. Houve alturas em que passávamos o dia inteiro sem comer”, conta o trabalhador resgatado, Manuel Nascimento. Segundo o relatório dos fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego, 210 trabalhadores foram resgatados. Eles foram levados por uma empresa intermediária para trabalhar na região. Ainda segundo a reportagem, a Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Limitada contratou o alojamento onde ocorreram agressões físicas aos trabalhadores. “Agressões físicas e psicológicas, colocar arma na cabeça, aconteceram todas essas coisas. Muita gente foi realmente espancada lá. Arma de choque, bastão”, relata outro trabalhador resgatado, Givaldo de Jesus. Eles contam como conseguiram sair. “Foram três pessoas que, graças a Deus, conseguiram escapar e até dormiram na rua, no mato, abraçados outros por causa do frio e pegaram carro até Caxias do Sul. Chegaram lá e procuraram a Federal”, conta Givaldo. O que dizem os envolvidos: A Vinícola Garibaldi afirma em nota que o episódio foi investigado pelas autoridades competentes e que não foram encontradas provas de participação direta da vinícola no caso. Ela disse ainda que tem feito uma série de esforços para que esse tipo de situação não ocorra em nenhum elo da cadeia produtiva onde atua. A Vinícola Aurora afirma que não compactua com nenhuma conduta que atente contra a dignidade e os direitos dos trabalhadores e que nenhuma das situações de violência ocorreu sob sua dependência. A Vinícola Aurora afirma ainda que lamenta profundamente o ocorrido com a terceirizada Fênix. A Vinícola Salton afirma que colaborou ativamente com as autoridades, apesar de apenas a empresa Fênix ser responsável pela ação civil pública e que desde o incidente a vinícola se comprometeu a trazer melhores práticas para sua cadeia produtiva, garantindo que episódios como este nunca aconteceu denovo. A reportagem questionou a Polícia Militar sobre o envolvimento do policial Márcio Squarcier, um dos seguranças acusados de agredir os trabalhadores. A brigada militar afirma que o policial está afastado de suas funções e segue aguardando o andamento das investigações. Os advogados de defesa do soldado questionam a produção de provas na investigação e dizem que a investigação apenas teve em conta o reconhecimento fotográfico. Os advogados afirmam que o soldado Márcio Squarcier é inocente e está pagando por algo que nunca fez. Os advogados de Pedro Santana, responsável pela empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Limitada, afirmaram que foram disponibilizadas imagens registadas ao longo de três dias por câmaras de segurança localizadas no interior do alojamento. Segundo a nota, não foram encontrados indícios de violência ou maus-tratos aos trabalhadores acolhidos. Pedro Santana é investigado pelo crime de submeter trabalhadores a trabalho análogo ao escravo. A investigação ainda não foi concluída. A Polícia Federal disse que não comentará até que as investigações sejam concluídas. Nova oportunidade ‘Vida após resgate’: Profissão Repórter mostra histórias de trabalhadores após resgate do trabalho escravo Para não voltar a trabalhar em condições degradantes, Givaldo e seus amigos da associação se dedicam a realizar o sonho de ter o próprio negócio. Até que isso aconteça, eles recebem auxílio-curso de R$ 600 por mês. “O projeto ainda não mudou drasticamente a nossa vida, mas já temos a ideia de que vai melhorar ainda mais a expectativa de vida. Porque trabalhamos para nós mesmos, é outro nível. Cabe a nós fazer isso acontecer”, relata Givaldo. O idealizador do projeto, Vitor Filgueiras, destaca que o resgate resolve um problema inicial, mas o cerne do projeto é o que acontece no longo prazo. “Se você não tem alternativa para uma vida digna e sustentável, a tendência é que você volte a se submeter a potenciais formas de exploração semelhantes e ainda piores do que aquelas que você encontrou antes. O que o projeto faz? Diga, olhe, você não precisa mais fazer isso. No seu local de origem, na sua comunidade, você pode ter uma alternativa sustentável de uma renda digna”, destaca Vitor. Anos de exploração Em Minas Gerais, a equipe do Profissão foi a Uberlândia e Belo Horizonte para conhecer as histórias de três mulheres que foram resgatadas do trabalho escravo doméstico em 2023 e agora, livres, tentam recomeçar. O drama da empregada doméstica que foi explorada pelos patrões durante 40 anos: ‘Nunca recebi salário’ A empregada doméstica Maria Raimunda, de 61 anos, ainda mora na casa onde trabalhava. Há um ano, os fiscais receberam uma denúncia e, ao chegarem ao local, perceberam que Maria estava em condições análogas à escravidão há 40 anos. “Eu falei para ela pagar o salário e ela disse: ‘Ah, Maria, ano que vem eu faço isso para você’. Fiquei, fiquei o resto da vida até ela falecer”, conta a trabalhadora resgatada. Quando o caso veio à tona, todos os envolvidos já haviam falecido. Após 40 anos de exploração, Maria administra a casa como proprietária da residência. “Os exploradores não tinham herdeiros legais, os herdeiros eram sobrinhos. ”, afirma a advogada clínica do trabalho escravo da UFMG, Fernanda de Mendonça Melo. Com o poder sobre sua vida recuperado, Maria já planeja sonhos para seu futuro: “Agora é hora de cuidar da minha saúde, como já estou cuidando, e deixar uma. pouco, viajando, né? Estou louca para conhecer o Rio de Janeiro”, diz Maria Raimunda As histórias de mulheres resgatadas do trabalho escravo doméstico Um vídeo mostra o momento em que Ângela Maria da Silva, 60 anos, e Fátima Aparecida. Ribeiro, 54 anos, sentiu que a vida poderia ser melhor depois de ser resgatado de casas onde trabalhou durante décadas em condições semelhantes à escravidão (ver acima). Foram os vizinhos que denunciaram a situação das duas mulheres ao Ministério do Trabalho. “Tinha gente que falava: Ângela, o que estão fazendo com você não é normal, mas eu não entendi nada”, conta o trabalhador resgatado. Fátima chegou à casa onde foi resgatada, em Belo Horizonte, ainda adolescente, sem pai e mãe. A promessa da família era dar oportunidades de estudo, mas, na prática, Fátima passou a ser empregada, mas sem salário. “Nunca tive quarto, não. Ela estava deitada no chão da sala, enrolada em um pequeno cobertor. Demorei para me acostumar com a cama”, conta Fátima. “Existe um discurso por parte da família empregadora, de que essas mulheres são como se fizessem parte da família e, a pretexto desse discurso, retiram direitos trabalhistas básicos dessas trabalhadoras, mas quando você olha para isso, não vivem como membros da família, estão alojados em quartos precários, com condições de vida precárias”, afirma Paulo Gonçalves Velozo, Procurador do Trabalho/MG. Hoje, os dois moram em uma casa em Uberlândia que se tornou uma alternativa para receber empregadas domésticas resgatadas pelo Ministério do Trabalho. Hoje, os dois querem investir nos estudos. Enquanto Fátima aprende a ler e escrever, Ângela já sonha com voos maiores: “Quero estudar, fazer faculdade”, diz Ângela. A Justiça já determinou que os 2 trabalhadores recebam os salários que nunca foram pagos, além de indenização por todas as situações degradantes e violentas a que foram submetidos Os ex-patrões morreram e os advogados das famílias recorreram e aguardam novo julgamento, o escritório que representa a família não respondeu às nossas perguntas. Repórter:
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