A encefalopatia hepática causa confusão mental, letargia, tremores e dificuldade para dormir. Uma pesquisa realizada nos EUA mostrou que pode afetar quase 13% dos pacientes com diagnóstico de demência. A boa notícia é que existem estratégias simples para controlar a doença. Quando o fígado para de “filtrar” as substâncias tóxicas, elas podem acabar no cérebro. GETTY IMAGES via BBC De um momento para o outro, a pessoa começa a se sentir cansada, confusa, sonolenta e desorientada. À primeira vista, sintomas como estes sugerem que algo não está bem no cérebro – e a demência parece estar a ganhar terreno. Porém, para um número considerável de pacientes, esses desconfortos estão relacionados a problemas em outra parte do corpo: o fígado. Embora pouco conhecida, a encefalopatia hepática vem chamando a atenção de especialistas, que se preocupam com a falta de diagnóstico adequado da doença e com a probabilidade de aumento do número de pessoas afetadas nos próximos anos, devido ao crescimento da obesidade e outras doenças que afetam o metabolismo. Mas há uma boa notícia: essa causa do comprometimento cognitivo pode ser revertida com pequenos ajustes na rotina e com a ajuda de alguns medicamentos. Medicamento que retarda a progressão do Alzheimer em estágios iniciais é aprovado pela FDA Mais comum do que parece Um estudo publicado no final de junho no The American Journal of Medicine revelou que a encefalopatia hepática pode ser mais comum do que se imaginava. Pesquisadores da Virginia Commonwealth University e do Richmond Veterans Affairs Medical Center, nos Estados Unidos, analisaram dados compilados entre 2009 e 2019 de 68.807 pacientes com diagnóstico de demência. Os resultados dos exames que avaliam a saúde do fígado (conhecido pela sigla FIB-4) revelaram que 12,8% destes indivíduos apresentavam indicadores sugestivos de cirrose e potencialmente sofriam de encefalopatia hepática. O percentual é semelhante ao de outro levantamento feito pelo mesmo grupo de cientistas. Em estudo com 177 mil veteranos americanos, cerca de 10% deles apresentaram alterações que indicavam disfunção hepática. “O FIB-4 é um método fácil para determinar o risco de doença hepática avançada. Pacientes com alterações neste exame têm grande probabilidade de ter cirrose, condição que geralmente não apresenta muitos sintomas”, explica o médico Jasmohan Bajaj, um dos autores do estudo. “E mais da metade dos pacientes com cirrose desenvolve alguma forma de encefalopatia hepática”, estima. Bajaj destaca que ele mesmo acompanhou casos de indivíduos que foram diagnosticados com algum tipo de demência (como Alzheimer) ou doença de Parkinson, mas que na verdade apresentavam problemas hepáticos. Nestes episódios bastava fazer o diagnóstico correto e iniciar o tratamento para que os sintomas neurológicos e cognitivos desaparecessem completamente. Para a médica Sonia Brucki, coordenadora do Grupo de Neurologia Cognitiva e Comportamental do Hospital das Clínicas de São Paulo, chama a atenção o fato de especialistas americanos terem encontrado alterações sugestivas de encefalopatia hepática em quase 13% dos pacientes com demência. “Até porque os testes de função hepática são obrigatórios na investigação de qualquer comprometimento cognitivo”, avalia. A confusão mental está entre os sintomas da encefalopatia hepática. GETTY IMAGES via BBC Falha hepática O hepatologista Raymundo Paraná, professor da Universidade Federal da Bahia, explica que a encefalopatia hepática é uma intoxicação do cérebro por substâncias que deveriam ter sido metabolizadas pelo fígado. Vale lembrar aqui que o fígado é fundamental nos processos de digestão e também “quebra”, ou metaboliza, elementos tóxicos que podem ser prejudiciais ao restante do corpo. Essas moléculas são então descartadas na urina ou nas fezes. Quando o fígado está doente e é danificado por vírus (como os que causam as hepatites B e C), excesso de gordura, álcool ou outras substâncias nocivas, ele deixa de funcionar conforme o esperado. Com isso, certas moléculas (como a amônia, da qual falaremos mais adiante) que deveriam ser filtradas e descartadas permanecem no corpo e podem ir parar no cérebro — onde prejudicarão a atenção, o raciocínio e a memória. “Há casos em que o fluxo sanguíneo para o fígado fica prejudicado. Com isso, o sangue desvia para outras áreas, como esôfago e estômago, e chega ao cérebro sem passar pelo tecido hepático”, explica Paraná, que não foi diretamente envolvido em pesquisas realizadas nos EUA. Paracetamol: o medicamento que se tornou a principal causa de insuficiência hepática O médico destaca que a encefalopatia hepática é uma condição relativamente comum, mas há certa dificuldade na detecção de casos subclínicos, com sintomas mais leves que podem ser confundidos com outras doenças. “Nos casos clássicos da doença, a família começa a notar que o indivíduo apresenta letargia e confusão mental, tem alteração no ritmo do sono, perde o controle dos esfíncteres e sofre com tremores nas mãos”, lista Paraná. “São sinais muito indicativos de encefalopatia hepática”, acrescenta. Brucki reforça que a encefalopatia hepática e a demência “clássica” apresentam manifestações bem diferentes. “O quadro hepático tem evolução mais rápida e é diferente da demência, em que as manifestações são crônicas, com alterações progressivas nas funções cognitivas, que afetam a memória, a linguagem, a atenção e a capacidade de raciocínio”, afirma. A confusão entre as duas doenças ocorre com as formas mais sutis de envolvimento hepático. “O paciente pode não apresentar tremores ou redução dos reflexos, o que dificulta o diagnóstico”, afirma o médico. Nestes casos, existe um risco maior de receber um diagnóstico errado — e depois ser submetido a um tratamento contra o Alzheimer, por exemplo. Além dos exames que avaliam a saúde do fígado, Paraná destaca que o médico pode recomendar um eletroencefalograma e outros exames de imagem, que avaliam o acúmulo de determinadas substâncias no sistema nervoso. Existem vários fatores que podem danificar o fígado – desde vírus até excesso de gordura. GETTY IMAGES via BBC Como reverter o comprometimento cognitivo É curioso pensar que, para uma doença que tem origem no fígado e afeta o funcionamento do cérebro, a solução está em uma terceira parte do corpo: o intestino. Paraná explica que, na encefalopatia hepática, uma das principais substâncias que “escapam” e geram problemas no sistema nervoso é a amônia, produzida em grande parte por bactérias que habitam o sistema digestivo. “Normalmente a amônia vai para o fígado, onde acaba transformada em uréia e é eliminada na urina”, afirma o médico. Nesse grupo de pacientes, o excesso de amônia vai parar na cabeça, onde “intoxica” o cérebro e gera sintomas de confusão mental, tremores e letargia. “O objetivo do tratamento, portanto, é evitar que a amônia chegue ao cérebro”, resume Paraná. Para isso, os especialistas podem apostar em algumas estratégias diferentes. A primeira delas envolve evitar a constipação. Isso ocorre porque a prisão de ventre estimula a proliferação de bactérias produtoras de amônia no intestino — e, quanto mais amônia, mais intoxicação do cérebro. A principal forma de prevenir um cenário como esse é usar laxantes específicos, que garantem pelo menos duas idas ao banheiro todos os dias. Afinal, junto com as fezes, milhões de bactérias são descartadas e jogadas no ralo. “Medicamentos como a lactulona previnem a constipação e criam um ambiente no intestino que dificulta a absorção da amônia”, afirma o hepatologista. Quando esta primeira estratégia falha, os médicos recorrem frequentemente a um medicamento chamado rifaximina, que controla a população bacteriana no intestino. Paraná destaca ainda que medicamentos com efeito diurético, usados no tratamento da hipertensão, por exemplo, podem estimular a produção de amônia no organismo. No caso desses pacientes pode ser necessário ajuste de dose ou alteração do princípio ativo para evitar encefalopatia hepática. “Também é importante evitar medicamentos que são metabolizados pelo fígado e buscar uma dieta pobre em proteínas”, acrescenta Brucki. Todas essas medidas revertem inclusive o declínio cognitivo relacionado à intoxicação do sistema nervoso. “A maioria dos pacientes com encefalopatia hepática responde bem ao tratamento, por isso é essencial identificar esses indivíduos para evitar que sua condição seja confundida com demência”, afirma Bajaj. A encefalopatia hepática é um problema que surge no fígado, tem efeitos no cérebro e cuja solução depende do controlo das bactérias no intestino. GETTY IMAGES via BBC Por fim, o Paraná alerta que uma série de fenômenos que se intensificaram nos últimos anos podem tornar essa situação cada vez mais comum. “O envelhecimento da população tem provocado o aumento de doenças crônicas e degenerativas, e algumas delas afetam o fígado”, afirma. “Além disso, o uso inadequado de medicamentos, ervas e fitoterápicos, o abuso de álcool, a transmissão de hepatites virais e o aumento de doenças autoimunes, obesidade e síndrome metabólica geram repercussões hepáticas”. O hepatologista reforça que diversas doenças que prejudicam o fígado são silenciosas. Muitas pessoas não têm ideia de que têm cirrose, por exemplo — e só apresentarão os primeiros sintomas quando a doença já estiver em estágio avançado e irreversível. “É importante que todo paciente passe por uma investigação básica, que envolve exame de sangue e ultrassom, para saber se o fígado está sofrendo ou não”, finaliza. EUA aprovam novo medicamento para Alzheimer
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